Crónica de Alexandre Honrado | A cultura que não serve para nada

A cultura que não serve para nada
É a mesma que nos falta

Um dos maiores entraves aos estudos de cultura, para além das múltiplas definições e surpresas que o termo – cultura – tem sempre à nossa espera, nem todas pacíficas ou consensuais, prende-se com o facto de que ao investigador, ao cientista, a distância capaz de garantir um bom resultado para a sua análise tropeça sempre naquilo que traz consigo e que é, afinal, a sua própria cultura.

Assim, ao pegarmos num exemplo qualquer – hipertexto, cultura urbana, mundo virtual, tecnologia, sexo, televisão, literatura, mudanças comportamentais, linguística cognitiva, redes sociais, grafites, tatuagens, … – o que pensamos é sempre passado pelo crivo dos nossos preconceitos e a aplicação de uma metodologia operacional bem definida tem sempre a marca pesada das nossas heranças e manias.

No centro do estudo deve estar, assim, o próprio ser humano – o que torna esta área específica do entendimento pertença do grupo elitista e apurado do Humanismo.

Quem estuda cultura espanta-se com algumas evidências: a cultura não é uma coisa boa, como a poesia não é uma coisa bela, ou a arte uma coisa útil.           A cultura nazi, por exemplo, foi uma festa de carrascos numa Humanidade perdida; poemas de provocação ou aparentemente sem sentido – experimente-se dar a comentar Herberto Helder a um grupo de alunos: A bicicleta pela lua dentro – mãe, mãe -/ ouvi dizer toda a neve – podem não ser belos para alguns dos seus consumidores e intérpretes, a arte não salva vidas num terramoto nem melhora o nível de vida dos sem abrigo que vivem a duas ruas de distância do museu.

É claro que do texto irradia sarcasmo, mas é mais ou menos consensual que sendo aceite a definição genérica de que a cultura é a definição genérica formulada por Edward B. Tylor segundo a qual cultura é um argumento complexo que inclui o conhecimento, as crenças, a arte, a moral, a lei, os costumes e todos os outros hábitos e capacidades adquiridos pelo homem como membro da sociedade, pouca coisa fica de fora. Nem a Supernnany, os reality shows, a sordidez dos comportamentos que vemos, vivemos e dos quais somos cúmplices, as eleições de políticos corruptos e incultos, a indiferença em que nos entrincheiramos, estão de fora do pacote. Parece que cultura é tudo – pelo menos o que se distingue da Natureza. E nesse sentido, a cultura não é natural. É humana.

Um cão de gabardina, uma casa na arriba fóssil, o pinhal que incendiamos porque o votámos ao abandono, a estupidez do poço em que caímos por não querer aprender a usar uma corda, o desdém da cultura alheia ou das propostas culturais, normalmente imanados de quem, por falta de acesso ao conhecimento, preferiu a alarvice do encolher de ombros e do descaso, as nossas criancinhas que para não deitarem a toalha abaixo no restaurante são ligadas ao providencial game boy de jogos mais ou menos hipnóticos– são exemplos de cultura, como o são tatuar a parede do prédio e pintar a pele com os motivos da simbologia mais diversa, mesmo não descodificada pelo utente.

Não se pense que cultura é apreciar a audição do concerto para cravo No.3 em D maior, BWV 1054, de Bach, ou saber distinguir a pintura de Lucian Freud de todas as outras, ou cantar a Lúcia de Lammermoor, fazendo justiça a Gaetano Donizetti. Para mim, por exemplo, é objeto de estudo. Como a sua prima civilização, ou o seu parente cada vez mais afastado, o ser humano.

 

Alexandre Honrado
Historiador

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